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A mãe mulher

Simone de Bevouir dizia: "Não se nasce mulher, torna-se mulher". 

E o que é a mulher? 
Eu acredito que não exista uma resposta certa nem uma resposta fixa, mas, em qualquer tempo, em todas as culturas, o que todas as mulheres têm em comum é a força criadora, geradora e cuidadora. Claro que biologicamente falando, mulheres (cis) têm úteros, e estão propensas a gerar filhos, mas a nossa força criadora não se resume à esta bela missão: nossa energia criativa é capaz de criar e regenerar o mundo todo, nos planos materiais e espirituais.

Diz aí, olha quanto exemplo incrível de mulheres nós temos! Recentemente, recebemos uma lista de chefes de Estado mulheres que conseguiram rapidamente conter a pandemia do novo coronavirus em seus países. Que coisa linda! Coração, e cérebro. Razão e sensibilidade. Força e coragem. Assim somos nós. 

Na minha experiência pessoal, o que significa "tornar-se mulher"? 
Vamos ao jogo de luz e sombras. 
Eu, quando menina, obviamente ouvi as frases: "Fecha essas pernas", "Isso é brincadeira de menina", "Com quem você vai casar?", e coisas desse tipo. Enquanto eu era criança, sinceramente eu não percebia muito bem a diferenciação entre meninos e meninas, mas tudo mudou na adolescência. 
Aos 10 anos de idade veio minha menstruação. Eu fiquei em choque, não esperava, minha mãe já havia comentado sobre o assunto comigo mas acho que nem ela esperava que viria tão cedo. Foi o banho mais sofrido da minha vida... Eu chorava sem parar e queria que a água levasse o sangue embora e devolvesse minha inocência infantil. Isso se tornou um segredo, ninguém podia saber. As cólicas eram terríveis, o mau humor idem, a vergonha na escola nos dias de menstruação eram apavorantes. O que eu aprendi sobre lidar com a menstruação foi: quando ela vem, a gente coloca o absorvente e vai vivendo os dias devagar até ela passar. Mas não tive educação sexual, não tive maiores explicações sobre o assunto. Era isso: um castigo. Na igreja que eu frequentava, me disseram que meninas que menstruam cedo é porque tem vontade de transar logo. Eu fiquei arrasada com aquele rotulamento. Achei injusto, mas me condenei. Nunca tinha pensado em transar, aos 10 anos de idade, nem sabia como fazer e nem porque. 

Bem, eu tava lendo "O Cortiço" do Aluízio Azevedo essa semana e tem uma personagem chamada Pombinha, uma jovem menina que espera ansiosamente por sua menstruação. Quando vem, a festa é feita, e a mão na moça tomada em casamento. Passamos tantos e tantos anos (séculos) tendo essa relação com a menstruação, que acaba sendo difícil tirar da nossa cabeça esse inconsciente coletivo. Hoje em dia, ainda bem que temos mais acesso à informação, eu vejo muitos movimentos femininos de consagração do sangue da menstruação, onde se valoriza cada período do nosso ciclo reprodutivo, onde se entende as etapas, trabalha os sentimentos, ora libertando pensamentos, ora impulsionando ações. Isso é lindo! É isso o que faz sentido. É isso que potencializa a nossa força, e deixa de associar nossa natureza com a servidão. 

Dei essa volta pra entrar no assunto: mãe. 
Há cerca de 01 ano, eu estive grávida. Não me senti mãe, mas senti conexão. Imaginei, idealizei. Mas a realidade era urgente e cruel e a decisão que julguei mais acertada para mim e para esse possível feto que iria se desenvolver foi interromper a gravidez. Não vou entrar em detalhes sobre o que penso do aborto, mas sei que passei por isso e não é fácil nem simples como os detentores da moral apontam. 
Á época desse tornado em minha vida, segredei à minha avó, uma enfermeira de carreira, que já havia me dito que realizou cerca de 3 abortos. Ela, preocupada, acabou contando para a minha mãe, que não reagiu bem. 

Tá, agora vamos ao grande e complexo paradoxo da minha encruzilhada sobre: o que eu penso ser maternar (mesmo sem experiencia prática) e o que de fato se apresenta como maternar na minha realidade. 

Nessa ocasião, como minha mãe reagiu? Realidade: i) chorou; ii) disse que era o maior sonho dela, ser avó; iii) não perguntou como foi, como eu me sentia e como era a relação com o progenitor; iv) falou que eu não poderia rejeitar o "meu bebê", pois ele sente; v) falou "não mate seu filho"; vi) pediu pra ela a criança, dizendo "dá pra mim que eu cuido". Como eu acho que uma mãe deveria agir? i) se preocupar, em primeiríssimo lugar, com o estado físico e emocional da filha; ii) buscar conversar, seja pessoalmente ou por telefone, sobre o que ela sente, o que quer fazer, quais são suas motivações; iii) não julgar nem fazer chantagem emocional; iv) se propor a ajudar a solucionar o que quer que se decida; v) acolher a filha, seja com um abraço, com reza, com informações, vídeos, enfim. 

Eu não tive esse apoio e sei que a maioria das meninas do Brasil não tem. Fazer o que... É a nossa realidade. Também não esperaria APOIO à minha decisão, do tipo: sim, está ótimo, você que sabe, vai que é tua, se quiser ajuda eu compro os remédios e fico com vc. Eu entendo que seja difícil e demanda muita maturidade e evolução espiritual. Mas, eu tive que buscar isso em alguém. E mais uma vez, mulheres me ajudaram. E se eu estou bem e viva, é por isso. 

Eu acho que nunca vou conseguir mostrar pra minha mãe como me senti com a atitude dela, até porque esse assunto é delicado e gente não fala sobre. Mas a nossa relação é bem difícil. 
Minha mãe era forte, teve 3 partos normais, nunca teve babá ou empregada. Entretanto, lhe faltou muita informação. Ela criou à moda antiga, chineladas, ameaças, rsrsrs. Nos amamentou apenas até os 3 meses (é muito pouco pra nutrição e pra relação de afeto e aconchego que existe entre mamãe e bebê). Na minha adolescencia, minha revolta sobre tudo o que estava acontecendo em casa (sobre o casamento dos meus pais), e a negação de ter que ia pra igreja, fizeram com que nós nos víssemos como inimigas. Eu tenho muitos e muitos traumas dessa fase. Pensava e tentei suicídio, tinha certeza que minha mãe não gostava de mim, não me sentia parte da família. 

Hoje, eu sou uma mulher e sou adulta, tenho 28 anos. Mas ainda assim, carrego algum incômodo dessa relação. Eu vim parar de novo no convívio com a minha mãe e agradeço a acolhida. Mas a gente é muito diferente e não se entende. Minha mãe evoluiu demais nos últimos anos. O machismo, a religiosidade, e tantas outras questões estruturais, passaram a ser muito mais amenas no comportamento dela. Mas eu ainda vivo uma prisão interna: não me mostro, não dialogo, não confio. Eu me sinto taxada até hoje, como "vagabunda, sem futuro" (coisas que ouvi da minha mãe... ouvi muitas coisas horríveis da minha mãe ao longo da vida), ainda que eu tenha certeza, no meu interior, que eu não sou. Hoje as brigas são mais sutis e aparentemente bobas, mas olha só: dia desse eu comentei com ela que queria colocar umas plantas na varada, e a resposta foi: "Você não da conta nem dos gatos." E fim. Eu discordo, mas me calei e abaixei a cabeça e a auto estima. Outro dia eu tava cozinhando, passei pelo corredor da sala e vi o controle da tv no chao. Comentei com ela, que estava deitada no sofá, ela pediu pra pegar, eu já tinha passado e não quis voltar nem pegar pois tava com dor no corpo e atarefada. No que a comida ficou pronta, tocava uma musiquinha e eu fui sambar do lado dela, nem lembrei de controle. Ela se levantou numa fúria e disse: "Você é muito pirracenta mesmo, né?". Não entendi, parei de dançar na hora, minha alegria foi toda embora... Ela tava falando do controle. Quando minha mãe faz essas coisas minha vontade é de me furar inteira até ver o sangue escorrendo de cada buraco e morrer numa poça de sangue brilhante. Foda-se, nessa horas não tenho amor à vida, não vislumbro futuro, me sinto uma inútil incompreendida. Sinto vontade de sumir. 

Eu estou entendo agora que preciso curar essa relação pois ela me faz muito mal. Entendo também que minha mãe tem suas limitações, seus problemas, suas questões. Não faço ideia de como ela me enxerga, mas tem hora que penso que ela me odeia de verdade kkkk E que preferia que eu não tivesse nascido. Ela me acha inteligente, mas eu não ligo pra nenhum elogio que ela faz, todos me soam falsos. Ela diz que pisa em ovos comigo, e eu realmente não tenho tato para lidar. Tem coisa que me irrita e eu calo, tem coisa que ela diz ou faz onde me sinto atacada sem motivo e retruco. Eu vivo calada, vivo fechada, enclausurada. Aprendi com ela a não sorrir, não brincar, só reclamar e maldizer a vida. Mas hoje ela é outra pessoa, e eu não sei me aproximar, nem reconhecê-la. 

Preciso resetar toda a relação com a minha mãe para avançar na vida. 
Preciso perdoá-la, me perdoar, honrá-la e me honrar. E isso é urgente. 

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